espectáculos
menu principal
programação
quem somos
espectáculos
apoios
press release
newsletter
animação
itinerância
formação
contactos
bilheteira
links
Ella

de Herbert Achternbusch


estreia em Coimbra, a 11 de Janeiro de 1993

Edifício das Caldeiras do Antigo Hospital da U.C.

total de espectáculos - 48 (Coimbra, Lisboa, Porto e Évora)
total de espectadores - 2.641


3ª produção - A Escola da Noite©Janeiro1993


Ficha Técnica:
•••Tradução: Idalina Aguiar de Melo.
•••Encenação: Fernando Mora Ramos.
•••Elenco:
•••••••••Ella > Amélia Varejão
•••••••••Josef > Fernando Mora Ramos
•••Assistência de encenação e dramaturgia: Isabel Lopes.
•••Cenografia, figurinos e adereços: José Carlos Faria, António Canelas (Cabeleira) e Amélia Varejão (Pano de Boca).
•••Assessoria técnicas: Jorge Ribeiro.
•••Videomontagem: José Henrique Caldeira.
•••Grafismo: Ana Rosa Assunção.
•••Fotografia: Susana Paiva.
•••Carpintaria / Montagem: Carlos Figueiredo.
•••Produção: A Escola da Noite.
•••Produção executiva: António Jorge Dias e Carlos Sousa.
ella

No Galinheiro Europa 92

No Galinheiro Europa 92 Anos 90. Todas as violências mostram os dentes num caudal de conflitos sempre a alargar margens. O mundo regressa a passos rápidos à barbárie. Os conflitos, como vulcões adormecidos por um medo imposto, estoiram por todo o lado e rebentam todas as geografias convencionadas. Mesmo no centro da civilizada Europa o racismo irrompe para uma escala preocupante. Estava lá antes, porque sistema democrático formal e cultura humanista enraizada e generalizada à escala de um povo não são a mesma coisa.

As “Ella” deste mundo são ainda o resultado de outra violência, embora a mesma, subterrânea, menos visível apesar de exposta: a que brota das malformações de uma sociedade estruturalmente disforme, monstruosa, que assenta quotidianamente a sua existência na prepotência, no sexismo, no porrete, na hierarquia, na corrupção, no servilismo, na lei do mais forte, que impõe a sua “cultura” do único, os seus antivalores como referência obrigatória. É esta violência, que se auto-alimenta de nova violência e expande violência, que explica as páginas pejadas de casos limite, incríveis mas não menos reais por isso, dos quotidianos nossos de todos os dias. Exclama então a nossa sensibilidade bem pensante, como é possível, no fim do século, e na nossa Europa?

Dos fracos não reza a história. Também é verdade que hoje em dia as histórias tendem mais a rezar dos fracos que dos heróis. Aliás heróis só mesmo os publicitados, os mediáticos. E Ella só é revelada porque por perto andava o contador de histórias Achternbusch. O provocador Herbert Achternbusch. Como outrora fez Angelo Beolco com Ruzante, o camponês sem terras, apavorado, entre batalhas, lanças, archeiros e bombardas que, borrado de medo, vomitou o seu “falatório”, significativa arma de arremesso pelo relato de tanta atrocidade insensata. Herbert Achternbusch faz agora falar a sua própria tia, Ella, na voz do filho José.

A história de uma mulher, essa parte oprimida da humanidade que na voz de qualquer conservador- — progressista começa agora a ter algum relevo estatístico, agora que foi admitida no concerto das nações masculinas e já é poder, quota a atingir por organismos partidários, piloto-aviador e militar, ministro e candidato a ministro, já quase é 5% do público masculino de um “Derby” e já dá uns palpites sobre os destinos pátrios do futebol clube, já quase é igual a Ele. Mas, continuará o conservador-progressista, não perde pela demora que a história da maçã é para todo o sempre e a cobra venenosa é viva ainda e ainda armada de muitas e subtis manhas. Vestirá a pele de todos os cordeiros que necessitar para que de novo inocente, uma Eva se manche de novo com nova nódoa eterna de outra falta de respeito aos mandos do padre eterno.

Mas mulher e pobre de espírito atrai mais opressão, desprezo, pancada. Coisas da Providência, sempre tranquila na sua lógica sobre-humana, mãos sempre alvas. Destino bem palpável, perceptível, concreto, para um olhar esclarecido, sem perversão. O mais forte parece comprazer-se do lado mais confortável do muro da separação genética com a desgraça das pobres criaturas. Que se passará para uma cultura escamotear permanentemente os seus crimes, remetidos para a periferia, como se esta não fosse vida, apenas um circo de atrocidades consentido e mantido fora de portas, lá pr’ás barracas? Lá para o escondido das páginas interiores, ou para o negócio das primeiras páginas nas publicações de circulação menor? Ou para dentro de instituições mais ou menos prisionais, isoladas por cordão sanitário, mundo separado dos outros?

Ella passou pelos hospitais psiquiátricos, pelas prisões, pelos asilos, pelos campos de trabalho forçado, pela guerra, pela doença estigmatizada, pela indigência total, inimigo número um certamente. Tudo o que alimenta a sua biografia soma-lhe dor e desgraça. E apesar de tudo, da triste criatura parece sempre vir um gesto de curiosidade, de existência. Ella é alguém que tenta ser uma pessoa, teimosamente, desde que se tem nas pernas. Mas antes disso já mal vinda, mal amada. A mais nova de três irmãs num mundo de negócios de gado, abate de árvores e tabernas. Sempre empurrada pela realidade para o abismo, para o infra-humano. Afinal a permanente tentativa de voo que relança cada ciclo da sua aventurosa desgraça vem-lhe de algo quase inesperado à luz dos factos: da besta progenitora parece ter herdado as qualidades do género a que pertence, o humano. Daí a possibilidade de ser gente. Sempre negada. Na família e nas instituições. Pelo meio a memória de alguns gestos bondosos e a mão da irmã Lena a evitar o pior? A prolongar o calvário?

Estranha resistência a de Ella. Como se o animal que tem dentro emergisse e lhe alimentasse sete vidas. Haste da planta que na obscuridade imposta bebe dos mais ténues relampejos de luz o seu ar, tentando, incansavelmente, a posição erecta. Homo erectus, o tal que por fim erguia as patas da frente em braços, mãos e dedos, finalmente em obras. E Ella, não traindo a pessoa que trazia consigo, não a perde porque não deixa de ser curiosa. Mas não bastam duas pernas para que em definitivo a vida deixe de ser a quatro patas. Vida que, domada pelo castigo constante, finalmente soçobra diante das cores da caixinha mágica, sucedâneo menor da sua grande paixão, o cinema, “coisa diferente das pobres criaturas”, como diz.

Pelas paredes dos hospitais, pelos corredores das prisões se ficaram os queixumes de infinitas vozes que nesta fala da Ella também se ouvem. Dor já cega de sentir apenas agressão no gesto do outro, pai, polícia, marido, enfermeira-chefe, vigilante. A vida toda uma interminável carga de porrada. “Na minha vida toda nunca tive uma única hora boa”, diz Ella.

Isto é a civilização Ocidental, Cristã, Católica. Mais romana que de Cristo autêntico. Para os pobres de espírito, para eles será o reino dos céus. Onde Ella, como o pobre diabo Woyzeck, irá muito proletariamente, fabricar as trovoadas.

Resiste a língua, fala alinhavada por Achternbusch, também nos limiares da pobreza, repetindo-se à falta de vocábulos, que a Ella parecem fugir no momento em que necessita usá-los. Passajar de facto uma fala de uma língua, fala cheia de rasgões, fala entaramelada, mecânica, reveladora de uma expressividade que ficou aquém do ser.

E a Ella resta-lhe morrer longamente na agonia do filho que sem mãe é sem vida, de tal forma com Ella se identifica. Sem ressurgir como Cristo ao terceiro dia. Só, perante o mundo, apenas corpo, o eu já ido e nele a alma decerto. O corpo, um gesto apenas, biológico, vegetativo.

Ella, mulher, bávara, criatura universal, amaldiçoada, identificada como débil mental. Europa 92.

Fernando Mora Ramos
in programa do espectáculo. Saiba mais sobre os conteúdos do programa aqui.


Sobre este espectáculo:

•••• Assistiu ao espectáculo? Dê-nos a sua opinião.